Para instalar uma infraestrutura de carregamento de uso coletivo, precisamos vencer a primeira barreira de conflito, que é o ser humano.
Fala galera, beleza? Nos últimos anos, me envolvi cada vez mais com a mobilidade elétrica a ponto de deixar de ter a exclusividade da visão do usuário e começar a entender a complexidade da implantação dos novos pontos de carregamento e até a ampliação dos locais já existentes.
Quanto mais simples e individual o local de carregamento, menos complexa se faz a infraestrutura. Para carregar um carro elétrico na "sua" garagem de forma "lenta" (entenda como lento um carregamento de até 3,5 kW), o usuário precisa apenas de uma tomada de 20A e um carregador portátil. Lógico que se você tem uma tomada de 20A, imagina-se que a infraestrutura está preparada para suportar essa potência, no caso de 220V de tensão. Se não estiver, já se trata de uma falha no projeto elétrico da casa e não teria relação nenhuma carregar um carro elétrico ou qualquer outro equipamento.
Ainda imaginando esse mesmo espaço individual, mas com a instalação de um wallbox de 7 kW, além da infraestrutura que suporte 32A, a ABNT estabelece algumas regras previstas na NBR 17019. Dentre as exigências, há a necessidade de instalar um quadro de proteção. Não se trata de nada absurdo, mas ainda sim demanda alguns cuidados adicionais. Se o carregador for trifásico (110 kW ou 22 kW), adiciona-se a necessidade de um autotrafo na maioria dos locais do Brasil para transformar 220V para 380V. Por isso que eu digo, não é porque você tem um carro que carregue em 22 kW que você vai querer ter um carregador de 22 kW em casa, muito menos precisará.
Agora imagine que "sua" vaga não seja tão individual e você more um condomínio vertical. Mesmo sua vaga sendo escriturada ou fixa e puxando a infraestrutura direto o seu relógio de luz, o condomínio exigirá uma ART (Anotação de Responsabilidade Técnica) para garantir que o equipamento atende os requisitos de segurança e não trará risco aos demais moradores.
Tudo isso parece complexo, mas o fato que basta seguir os parâmetros necessários e não haverá segredo algum para carregar seu veículo elétrico em um ambiente privado. Todavia, quando falamos de recargas de uso coletivo e que demandam gestão, a brincadeira fica mais interessante.
Quando compramos um veículo elétrico, recebemos a informação que basta uma tomada e um carregador portátil para termos o tanque cheio ao longo da nossa noite de sono. Não é falsa essa afirmação, mas não há como contar apenas com uma tomada fora da nossa humilde residência e aí o desafio é um pouco maior.
Hoje, os comércios são questionados dia após dia pelos usuários de carro elétrico: "quando irão colocar um carregador?". Não é sem razão, visto que muitos motoristas estão adotando os veículos elétricos como único veículo da família, mas a maioria das pessoas acha que basta ligar o carregador na tomada e pronto, foi criado um ponto de carregamento.
Entretanto, antes mesmo de você trazer o carregador até o local, o estabelecimento precisa "comprar a ideia" para prestar um serviço ou comodidade que até poucos anos atrás era desconhecido da população brasileira em geral.
É necessário avaliar seu público atual e a expectativa de novos usuários à médio prazo para que o projeto seja dimensionado de forma adequada. Com isso em mente, entra em ação o engenheiro para avaliar o melhor o local, considerando tanto a infraestrutura elétrica quanto a experiência do usuário.
E falando sobre a experiência do usuário, são diversos pontos que devem ser avaliados. Por isso que a participação de um especialista em mobilidade elétrica é fundamental, pois esse irá avaliar cada nó presente na experiência, como:
Hardware (Carregador)
Rede Comunicação (Internet)
Plataforma de Gestão
Localização
Disposição da Vaga
Regulamentação e Sinalização da Vaga
Regras e Tarifas
Suporte Técnico e Serviço de Atendimento
Agora, imaginem todo esse trabalho realizado e devidamente implantado, logo em seguida recebendo uma "bomba": A Emissão do Parecer Técnico Preliminar que considera o veículo elétrico um risco em potencial que precisa ser isolado porque nossas equipes de emergência temem não ser possível controlar um sinistro durante o carregamento.
Mais estranho que a proposta de implantação de diversos itens de segurança com efeito retroativo, é observar que os casos relatados de sinistros com veículos elétricos sequer são compatíveis com o receio apresentado.
De acordo com as consultas feitas com os especialistas envolvidos no Parecer, o receio é que a bateria do veiculo elétrico se torna mais instável durante o momento do carregamento. Todavia, as estatísticas dos poucos carros que ocorreram pelo mundo (e nenhum apresentado no Brasil), uma mínima parte traz ligação do acidente entre a bateria de alta tensão e o carregamento do veículo.
Estatisticamente, é mais provável acontecer um incêndio em um veículo elétrico devido a um acidente do que durante sua recarga (exatamente igual à um veículo à combustão). Menos de 20% dos casos aconteceram em até 1 hora após o término da recarga. É mais provável que um veículo elétrico seja atingido por um incêndio causado por outro veículo do que ele seja responsável pelo sinistro.
Sendo assim, qual o sentido de impor uma regulamentação adicional se não é a recarga em si o maior ponto de atenção? Já temos regulamentação sobre os equipamentos e sobre o uso das vagas que garantem a segurança necessária para uso, tanto em relação ao equipamento quanto ao código de conduta para uso da vaga. Parece mais uma forma de inibir que as pessoas de comprarem veículos elétricos sem proibir de forma explícita.
Mesmo que o Parecer Técnico seja ajustado para algo consideravelmente aceitável, o estrago já foi feito. Muitos locais suspenderam ou cancelaram a implantação de novos locais com receio de terem que se adequar à regras inviáveis. Pior do que isso seria se os locais que já possuem os carregadores começarem a desativar suas vagas de carregamento.
Além dos desafios naturais da operação de carregamento, seja de uso particular ou de uso coletivo, temos que adicionar o elemento humano na questão, que é o ser mais irracional entre os seres racionais. Quando o assunto em questão não é do seu interesse ou mesmo possui interesses conflituosos, logo considera a mobilidade elétrica como um inimigo a ser combatido.
Então, como os demais países resolveram essa situação? Afinal, todos os países possuem seres humanos e seus conflitos. A resposta é simples: os governos se posicionaram de uma forma que possibilitou o desenvolvimento da mobilidade elétrica até um ponto que ela se tornou forte o suficiente para crescer organicamente. As regulamentações que surgiram foram direcionadas no sentido de permitir a existência de forma segura para todos ao invés de aplicar impedimentos.
Se países como Noruega, Alemanha, China, Dinamarca, Estados Unidos, Austrália não possuem regulamentações tão rígidas, por que o Brasil deveria ter? O que nós sabemos que esses países não sabem? Ou melhor: oque nós não sabemos?
Até mais.
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